domingo, 5 de abril de 2009

Como se usa um escafandro?

(Fim de tarde, em algum lugar do hemisfério sul)
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- Hey George, cheguei!
- Olá Ann, como foi o dia?
- É, tudo correu como o esperado. É o que a rotina costuma fazer (risos).
- Imagino. Ah, olha só, loquei um filme pra assistirmos. Me acompanha?
- Claro amor, deixe-me só tirar esse cheiro de escritório do corpo e já venho. Me espera?
- Claro Ann. Mas não durma na banheira, ok?
- (risos) Ok, vou tentar...
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(Algum tempo depois)
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- Prontinho, tentei ser rápida e penso que consegui. O filme é de quê?
- Me disseram que é um tipo de drama. Recebi boas recomendações dele.
- Ok, então aperte o play logo!
- Não não, a pipoca tem que fazer parte do show. Espera só um pouquinho amor.
- Disse tudo, vai lá.
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(...)
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- Prontinho Ann, podemos começar.
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(algumas horas depois)
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- Hum, forte o tema. Não sei, não gosto de violência. Acho que não gostei tanto desse filme George.
- É, também fiquei meio perturbardo. Mas as cenas das mortes ficaram muito realistas, você viu?
- Sim sim amor, realmente, são o ponto forte desse filme.
- Nossa, são sim. Quando o rapaz prende a moça no arame e... Hum, amor, sei que não faço muito isso, mas comecei a pensar em uma coisa. Você percebeu que ficamos de alguma forma fascinados com as mortes em todos os filmes desse tipo que assistimos?
- Hum? Ah George, sei lá. Acho que é valido quando se trata de ficção. E é por isso que muitas pessoas ganham dinheiro. Elas sabem que não vamos levar isso tão a sério a ponto de sentir repulsa.
- É, pode ser. Mas é estranho. Quando paro pra pensar, vejo que o ser humano tem uma atração pelo mórbido. Me dá calafrios dizer isso, mas acho que todos temos um lado sádico escondido.
- Nossa George, mas eu, por exemplo, não consigo matar uma barata sequer! Não me inclua nessa sua generalização, por favor.
- Não me entenda mal Ann. Acho que estou viajando demais. É que depois de pensar um pouco, eu fico na dúvida se existe essa barreira separando ficção e realidade.
- Hum? Não entendi...explique-se melhor.
- Ok, vejamos bem. Nesse filme, por exemplo, estávamos torcendo pela mocinha o tempo inteiro. Para que ela matasse o vilão e conseguisse sobreviver, não é?
- Sim sim, e daí?
- Ann, eu lhe pergunto, como você diz que não levamos tão a sério o que nos é apresentado se, enquanto o filme passa, participamos ativamente, torcendo para que ela o mate? E se isso acontece? Qual a diferença disso para o que aconteceria se fosse o contrário? Da mesma forma, não se trata de um pensamento sádico? Não se trata de querer ver a morte na tela da tv?
- Nossa George, me senti culpada agora.
- É, me senti assim também.
- Amor, talvez com o tempo, a humanidade tenha se acostumado tanto a ver coisas assim acontecerem, que a ficção acabou sendo incorporada pela realidade, o que a faz ser mais uma rotina na vida das pessoas. O que me assusta é o tema.
- Realmente Ann. Uma metáfora para isso é, por exemplo, um acidente de carro. Já percebeu como as pessoas se dirigem rapidamente até o local para ver o resultado daquele acontecimento? Muitas até torcem para ver algo mais forte. É impressionante.
- O ser humano é complexo. Em casos como esse, chega a ser patético.
- É, é verdade. É um ser vivo de extremos. Criamos coisas maravilhosas e proporcionamos momentos intensos. E promovemos também os piores sentimentos possíveis, através das piores maneiras existentes.
- Interessante conversar sobre isso. Fazia tempo que não guiava meus pensamentos assim.
- Realmente Ann. Acho que a filosofia me ajudou um pouco, mas todos têm capacidade de fazer isso. Basta querer. A verdade é que a sociedade se acomodou.
- Talvez a rotina a forçou a se acomodar. Mas uma coisa não entendi amor. Te disseram que se tratava de um drama? Para mim, é um filme gore, não?
- É, estranho isso. Mas acho que quando me disseram, se referiam ao buraco que a sociedade está cavando para si mesma. Penso que pode ser seu túmulo (risos).
- É, é verdade...
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(barulho de tiros do lado de fora)
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- O que é isso amor?
- Tiros Ann, vamos ver se alguém se feriu!
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(Janela aberta, olhares curiosos)
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- Acho que não foram nessa rua...
- É, parece que não. Bom amor, quer que eu lave a louça?
- Seria ótimo amor. Enquanto isso, vou ver o que tá passando na tv.
- Ok Ann.

Um comentário:

  1. É algum tipo de banalização da violência que a torna um entretenimento para muitos. Não sei Jimmy, prefiro continuar com a falsa crença de que algo melhor é possível, mas suas palavras retratam bem o que a sociedade vem se tornando.
    Que Deus nos ajude...

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